Trabalho voluntário em fazenda orgânica na borda do mundo

“Vivemos em uma ilha remota perto do círculo polar ártico, com apenas 30 habitantes. Não temos bares, lojas nem internet”.

O anúncio da fazenda localizada no norte da Noruega, era franco no que eu ia encontrar lá: trabalho, natureza, silêncio. Era bem o que eu queria. Tinha vontade de conhecer a Noruega desde criança e meu plano durante a volta ao mundo era ficar o máximo que desse no país. Problema: tudo custa é muito caro! Como ter uma experiência “true” norueguesa sem estourar o orçamento da viagem? Dei algumas dicas aqui, mas, além de passear, eu queria viver uma experiência rural. Por isso, escolhi fazer WWOOF (World Wide Oportunities on Organic Farms) e trabalhar de graça em troca de casa, comida e uma experiência que não está nos guias de viagem. Fiquei 10 dias na fazenda, onde aprendi muito sobre agricultura orgânica, sobre a geografia e história da ilha e sobre a vida simples, com o mínimo de consumo possível.

Cheguei à fazenda no dia 26 de Julho, auge do verão, mas fazia um pouco de frio e garoava de mansinho. Para chegar na ilha de Hestmona, fui de trem até Mo I Rana, bem no norte da Noruega e de lá peguei um ônibus até um porto de onde sai o ferry para as ilhas em volta. Kurt estava me esperando no porto, gorro na cabeça, barba branca sem bigode e botas impermeáveis nos pés.

“Parece o Mestre dos sete anões da Branca de Neve), pensei. E, realmente, ele tem o dom de ensinar como esse personagem da Disney!

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Hestmonvågen é uma pequena fazenda orgânica de substência, que vende o excedente de batatas e outros vegetais para a população da região, administrada por um casal de alemães: Kurt e Marie Louise Randeker. Casal de 65 anos sem filhos.

A ilha é cortada pelo círculo polar ártico, o que significa que eles vêem a aurora boreal durante o inverno e o sol quase não se põe no verão. Eu fui no verão, então precisei dormir cobrindo os olhos nas primeiras “noites”, até me acostumar. E chove muito! Em todas as estações… isso é bom para os musguinhos e cogumelos, mas é bem chato para nós humanos.

A sorte da ilha é a corrente do Golfo, que impede que tudo fique congelado. Em Julho de 2012, a máxima que peguei foi 20 graus, mas no inverno a temperatura não fica menor do que -10°C, o que nem é tão frio assim, vai? Dias lindos como os da foto acima são raros, mas valem a pena.

Não tem internet, cidade, lojas, mas tem correios, telefone e energia elétrica – ainda bem! Dá pra tomar banho quentinho, ouvir a previsão do tempo no rádio e esquentar chá na chaleira.

A fazenda tem criação de vacas leiteiras, planta batatas, capim para as vacas e outros legumes em uma horta bem variada. Como não têm licensa para vender o leite que produzem, a produção diária das 3 vacas leiteiras vira manteiga e dois tipos de queijo: quark (que é tipo cream cheese, mas com menos gordura) e ricota. Anualmente, eles produzem só dois sacos cheios de lixo (DOIS!). A fazenda rende 30 mil coroas norueguesas por ano – um pouco mais de 3.500 euros. O dinheiro é usado, principalmente, para pagar a conta de luz e telefone, comprar butijão de gás, açúcar, pão e ovos.

Há alguns anos, o governo norueguês suspendeu o subsídio para pequenos produtores rurais que produzem menos de 30 mil coroas – isso fez com que a fazenda passasse por maus bocados quando o inverno apertou e perderam uma parte da produção que esperavam. Hoje Marie Louise trabalha esporadicamente em um asilo para idosos e ganha, quando trabalha uma semana, os mesmo 3.500 euros que a fazenda produz anualmente. Por causa da ausência eventual de Marie Louise na fazenda, eles tiveram que parar com a criação de abelhas e de galinhas e compram mais coisas do que antes. Por outro lado, essa mudança na dinâmica familiar transformou a relação dos dois. Antes, Kurt e Marie Louise tinham um papel igual na fazenda, agora Kurt trabalha bem mais sozinho (por isso a importância dos voluntários no verão!) e Marie Louise tem mais poder sobre o dinheiro da casa, afinal é ela quem ganha a maior parte dele (meio à contra-gosto).

Quando cheguei à Hestmona, Marie Louise estava fora, trabalhando no asilo. Passei a maior parte dos dias só com Kurt e os animais da fazenda e isso foi muito bom, porque ele é um cara muito interessante, com um passado fascinante:

Kurt nasceu em uma fazenda, estudou nas melhores escolas de sua região, foi trabalhar nas fábricas da Volkswagen em Stuttgart, se envolveu com o movimento socialista, participou do Maio de 68, voltou-se para o sindicalismo, casou-se e mudou de vida: era hora de voltar para o campo. Qualquer campo não valia, tinha que ser uma fazenda orgânica, para produzir como seus avós. O casal herdou a fazenda da família de Kurt, mas sentia que o governo alemão estava tentando “matar” os pequenos produtores. Encontraram Hestmonvågen e se estabeleceram. O casal fala, além do alemão, inglês, italiano e os dois idiomas oficiais da Noruega: bokmål e nynorsk.

 

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A geladeira da casa é na verdade um “quarto frio”, esse aí de cima. É só um cômodo com paredes finas de madeira que não está ligado ao sistema de aquecimento do resto da casa.

No verãozão (lá pra agosto, setembro), é melhor deixar as coisas que deveriam estar congeladas no freezer que fica no porão. O resto dos alimentos se conserva bem em todas as épocas do ano.

Comíamos comida simples: muita batata e derivados do leite, claro! As refeições mais pesadas eram pela manhã e no fim do dia (macarrão, queijo, batatas). O almoço podia ser um bolo doce de queijo ou uma saladinha de rúcula fresca (recém colhida da horta!) com pão e queijo.

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A rotina diária era assim: eu acordava lá pras 7h, quando o Kurt já tinha tirado leite das vacas (não consegui acordar antes quase nenhum dia, sorry), aí tomávamos café da manhã e íamos para a lavoura.

Branco, o cachorro da fazenda, nos acompanhava o dia todo. Olha a cara dele de “me leva para passear”!

As atividades de cada dia variavam de acordo com a necessidade e com o clima. Era época de cortar o capim para colocá-lo para secar, então passamos muitas manhãs com uma máquina de cortar da década de 1950 que o Kurt comprou de uma fazenda sueca antiga que estava fechando (hoje em dia as máquinas que existem são todas com motor, que o Kurt não quer em sua fazenda).

Esse arado é movido à cavalo – uma égua forte e carinhosa chamada Brownie. Todos os dias era preciso fazer um ritual de amizade com ela, que imita as relações de afeto entre os cavalos, para que ela não me desse um coice durante o trabalho.

Funciona assim: primeiro você faz carinho na base do pescoço, onde acaba a crina. Depois, abraça a cabeça do cavalo e assopra as narinas dele. Se se ele (ou ela, no caso) decide ser seu amigo, funga de volta. Nojento? Talvez, se o focinho da Brownie não fosse a coisa mais macia do mundo! Dá vontade de fazer carinho para sempre.

Também trabalhamos arando sulcos na plantação de batatas, para matar as ervas daninhas, e recolhemos esterco das vacas para fazer adubo para a horta.

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As vacas ficam muito tempo no curral e, claro, cagam bastante. É preciso recolher essa bosta toda com pás e colocar nos espaços preparados para fazer adubo. Kurt mistura esterco com algas que se acumulam na praia, restos de vegetais e sobras da cozinha. Tudo isso fica em decomposição até o momento de replantar a horta.

Na foto acima, eu e Kurt estamos enchendo o carrinho de mão enquanto as vaquinhas observam o que diabos os humanos estão fazendo.

É nojento, sim, mas eu fiquei repetindo o mantra:

“Se você ama o leite, tem que amar a bosta”. Entendi que tudo é parte de um ciclo, uma cadeia que fica muito distante de nós quando vivemos na cidade. Me senti grata por poder participar de todo o processo da comida que consumia na fazenda, me ajudou a valorizar mais os alimentos que compro.

 

Depois do almoço, eu tinha a tarde livre para fazer o que quisesse. Passeei muito de bicicleta, dormi alguns dias em que fiquei mais cansada (especialmente no começo), fiz trilha para subir a montanha atrás da fazenda, li, escrevi, atualizei meu diário e, qaundo não tinha nada mais para fazer, também continuei ajudando Kurt no trabalho.

No fim do dia, tínhamos que tirar leite das vacas mais uma vez. Aí sim eu ajudava, hehe.

À noite, jantar, conversa e cama! O trabalho cansa.

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Só comemos carne quando o sobrinho de Marie Louise chegou para visitar os tios (ele mora no norte da Itália) e trouxe uns peixes congelados. Ele chegou no fim da minha estadia na fazenda, então o peixe serviu como jantar de despedida. Até tentamos pescar uma noite (noite é jeito de falar, eram 2 da manhã quando tirei a foto acima – sem flash), mas só conseguimos fazer amizade com uma foca, que ficou seguindo o barco enquanto a gente tentava pegar alguma coisa.

Depois que voltamos para terra firme, Kurt comentou “Sorte que não apareceram baleias, elas ficam tentando derrubar o barco quando conseguimos pescar alguma coisa”.

Fiquei na dúvida se gostaria de ter visto as baleias, sob o risco de ter que voltar pra praia nadando naquela água congelante (não fomos muito para longe, então não havia perigo de ficarmos perdidos para sempre – acho).

cogumelos gigantes

O que havia, sim, em abundância, eram cogumelos frescos!

Cogumelos enormes, cada um do tamanho de uma mão aberta, mais ou menos.

Para encontra-los, basta caminhar pelas trilhas em volta da fazenda com o olho atento.

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A foto acima foi tirada na minha última manhã, antes de pegar o barco de volta para o resto do mundo. Foi o único dia que vi luz acesa na cozinha! Um mês e meio após o solstício de verão, o sol começava a se esconder atrás da paisagem à noite.

– Conheça mais sobre a fazenda no perfil deles no WWOOF Norway. Acabei de descobrir que eles já têm internet!

– Saiba mais sobre WWOOF.

15 comentários em “Trabalho voluntário em fazenda orgânica na borda do mundo”

    1. Oi Claudia!
      Eles se inscreveram no WWOOF por carta (!) e no site, após pagamento da taxa do WWOOF, me passaram o telefone deles na fazenda. Mas hoje eles já têm internet, como dá pra ver no novo perfil deles que incluí no post!
      Que bom que gostou 🙂 Beijo

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