Pelo direito de morar, viver e brincar – antes, durante e depois do carnaval

“Ai, é longe, como vamos fazer pra chegar?”, sempre a minha desculpa pra trocar o Filhos de Tcha Tcha por outro bloco mais fácil. Em 2018, não. Chegamos cedo à Ocupação Maria Carolina de Jesus, na Rio Grande do Norte com Afonso Pena, para pegar o ônibus organizado pelo bloco até o Vale das Ocupações do Barreiro, orla em disputa em Belo Horizonte.

 

O caminho até lá é lindo, difícil se acostumar com a saída pela Zona Sul, onde a cidade dá espaço pro cerrado úmido. Fomos recebidos na Ocupação Eliana Silva com muita simpatia, cerveja gelada, uma baciada de tropeiro e o primeiro chuveirão para nos aplacar o calor do meio dia. Na concentração, ouvimos os representantes das comunidades nos darem as boas vindas, nos contarem a história de ocupação de cada um dos bairros-comunidades e trocamos abraços, glitter e beijos, claro, porque é carnaval. Aí a bateria se agitou, o siricotico baixou e saímos em cortejo pelo Vale, cruzando ruas de terra pela Irmã Dorothy e Camilo Torres até a Paulo Freire.

Não foi um caminho fácil, ainda que tenham me falado que o Tcha Tcha já passou por espaços mais desafiadores. Esgoto a céu aberto é normal por ali, afinal as comunidades não têm saneamento, coleta de lixo nem asfalto — e a luz é privilégio dos grandes. Os gratos banhos de mangueira que aplacaram nosso calor também transformavam a rua em lamaçal, amassamos muito barro pelo caminho.

 

Na bela tarde de sol da segunda-feira de carnaval, entre tropeços e escorregadelas na lama, todos chegamos até o final sem acidentes graves. Conseguir morar numa casa digna é muito mais difícil do que eu pensava, já tendo nascido com a sorte de ter uma sobre a cabeça. E é inaceitável que existam tantos edifícios vazios fechados para as pessoas que dormem na rua, prédios públicos esperando não-sei-qual-lei, prédios privados em especulação, espaços de expansão completamente ignorados pelo poder público.

 

Ignorados, não, tem uma parcela do aparato estatal que não se esquece jamais das comunidades periféricas: a Polícia Militar. O bloco acabou numa quadra (preparada com banheiros químicos para nos receber bem) com apresentação do “Lá da Favelinha”, projeto de inclusão social de jovens através da arte, especialmente o funk. Os home já tavam lá observando de cima. Quatro policiais uniformizados que pareciam estar ali só pra constar, que depois chamaram os migos pra participar da festinha de sangue que estavam planejando.

 

MC Madá, da comunidade Eliana Silva, deu uma canjinha com sua voz melodiosa e afinada, daí tava dada a largada pro baile que prometia durar a noite. Meus pés já estavam cansados, então me despedi de quem ainda tinha energia e voltei pra casa alguns amigos. Saí pouco antes que a PM resolvesse que precisava participar da festa do seu jeitinho. A festa foi interrompida pela violência dos tais ~homens da ordem.

 

Sádicos. Covardes. Genocidas. Esperaram que muitos brancos fossem embora para trocar o batidão pelo tiro de bala de borracha, o rebolado pelos gritos de socorro, cenário de horror que é rotina na periferia. Violência e ódio de quem tem certeza da própria impunidade. Conversar pra quê? Foram 10 horas de bloco sem precisar da intervenção de nenhuma autoridade com crachá ou distintivo, mas a polícia… ela tem ciúmes da alegria e se alimenta da carne de quem não tem voz. Não tinha que ser assim.

 

São os policiais animais incontroláveis?! Alô comandante-geral da PMMG, Helbert Figueiró, alô Secretário de Estado de Segurança Pública, Sérgio Barboza Menezes, alô governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, cês não sabem a diferença entre garantir a segurança e atacar pessoas indefesas? Que só queriam brincar mais um pouco?

 

Controlem seus homens! Controlem seus capitães do mato, escravidão já acabou tem tempo e tortura é crime, ainda que não pareça. Não vão ser as suas bombas que vão nos silenciar! Somos muitos. Estamos na rua com nossos corpos dançantes, errantes, rodopiantes. Roucos de tanto cantar, apressados em ver a cidade livre do medo e da violência, ansiosos pela garantia dos nossos direitos escritos na constituição, ah, aquela, saudosa, sonhada durante os anos da ditadura e parida 9 meses depois do carnaval de 1988.

 

Pra não esquecer, a senhorita que este ano adentra os 30 anos começa assim:

 

Artigo Primeiro, parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.

 

Aí vêm uns blablablas e depois o Artigo Terceiro:

 

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I — construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II — garantir o desenvolvimento nacional;
III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

A esperança de ver esse país realmente igualitário, justo e solidário só acaba quando a gente chegar lá.

 

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Outras crônicas carnavalescas:

O dia que o carnaval atravessou a montanha

Todo mundo me viu pelada na frente do bloco de carnaval

 

E mais:

Manual de sobrevivência no carnaval do Brasil

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