Quando meus pais se conheceram, dava pra ouvir as explosões de dinamite que abriram o Túnel da Lagoinha, oficialmente nomeado Neves — o avô, não o do heliococa. Abriram um caminho no meio da Serra do Curral, a que aberça o vale de Belo Horizonte, lado nordeste, importante pra conectar a “cidade” da periferia. Pouco depois do túnel pronto (ou foi antes?), meus pais se casaram e mudaram pro “outro lado”. Pra mim, ele foi sempre O Túnel, que nos levava de casa pro centro. De vez em quando ainda paro de respirar quando passo por ele, repetindo um desejo até chegar à luz do outro lado. Hoje, domingo de carnaval, não deu pra prender o fôlego o tempo todo, mas o Bloco Tico-Tico Serra Copo me deixou sem ar de tanto soluçar.
Realizei meu sonho de andar entre aquelas paredes com meus próprios pés, sentir o cheiro do asfalto, conhecer a acústica desse buracão no meio da montanha — ainda estou emocionada enquanto escrevo, tento fixar nas palavras o que senti.
O monstro coberto de fuligem estava quente, suado, mas abrigou todo mundo com o conforto possível em um carnaval. Seus deuses foram encantados por nossos corpos dançantes e libertos, nos deram passagem e bênçãos para o ano que se inicia. Atravessamos a extensão dO Túnel cantando com a bateria explodindo naquele eco sem fim, escutando tudo e nada, corações acompanhando o compasso do surdo, pés tentando sambar no ritmo da caixa, bocas acompanhando Chiquinha Gonzaga “Ô abre alas, que eu quero passar”.
Abre, cidade, não luta contra a nossa alegria, venha participar dela, exorcisar a tristeza com música, o desânimo com dança e superar o apego multiplicando amor. Muito amor pelos que lutaram pra que a gente passasse nesse território dos carros, pelos companheiros de front-folia que tocaram, dançaram, cantaram, ajudaram o bloco a andar, fizeram chuva, proveram água, cachaça de jambú, catuaba e o que mais tinham. Trocamos o que tínhamos.
Juntos, primeiro subimos e descemos pela montanha passando pelo Bairro Colégio Batista, preservado da especulação imobiliária graças aO Túnel, para depois atravessá-Lo triunfais e terminar a odisseia rebolando de frente pro complexo da Lagoinha, a maior encruzilhada de Belo Horizonte, refrescados por um caminhão-pipa. Se a água não chega até nós, fomos buscar. Antes a Lagoinha era o grande encontro de rios da Veneza Brasileira, hoje é encontro de viadutos, deserto de concreto e lata que por um dia se cobriu de glitter, adereços perdidos, encontros efêmeros e episódios de carinho.
Obrigada, Belo Horizonte, por mais um Melhor Carnaval da Vida. Que venham outros blocos, outros anos, mais emoções, mais dança, mais fraternidade!
Estamos transformados, nós e O Túnel.
Foto do Vinícius Raposa Guimarães
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