Meu Mercúrio é em Áries e isso significa que, se eu vejo um problema que eu sei resolver, eu pulo em cima dele mais rápida que um gato. É uma característica da minha personalidade que eu ainda preciso aprender a domar, já me colocou em muita treta que eu não tinha nada a ver, mas que achou sua razão de ser no carnaval.
Um bloco de rua é autogestão e cada um veste e desveste os papéis que quer sem precisar de nomeação alguma. Quem quer tocar traz seu instrumento, quem quer dançar dança, quem quer ficar louco fica, quem quer ficar nu se despe, quem quer pegar geral se encontra, quem quer ver de longe se encarapita num camarote, quem quer acolher abre as portas de casa prum xixi, sombra ou copo d’água, quem quer ser amado por todos joga água na multidão, quem quer ganhar dinheiro vende bebida, comida e outros combustíveis e quem quer ajudar o bloco a evoluir pela rua assume a corda. Meu lugar.
É uma bucha braba, mas dá gosto manejar aquela massa de gente louca prum lado e pro outro nas ruas, minha Mônica interior se regozija mandando nos outros, pedindo passagem pros músicos Ô Abre Alas Que Eu Quero Passar, a primeira marchinha da história, Chiquinha escreveu pra ajudar na corda.
Não é fácil: tem suor, tem rusgas (é raro acontecer, mas quase saí no tapa com um home hétero esse ano), tem empurrão (mas sem machucar, sem machucar!), mas também tem muito sorriso, brincadeira, encontros ao acaso com amigos, novas amizades feitas com uma olhadela e o melhor lugar para ouvir a música. As amigas que pulam carnaval comigo entendem que eu fico é solta no meio do siricotico e que pra me achar é só ir até as imediações da banda. Já chego e vou abrindo caminho na roda ao redor dos sopros, a bateria toda atrás retumbando e solto a voz pra cantar, certo ou errado, as letras das marchinhas e outras canções de carnaval. Confesso que demorei três anos pra aprender A Turma do Funil inteira e ainda não sei a letra toda da Aurora, mas já procurei no google e ano que vem farei bonito.
Nos blocos de rua de Belo Horizonte aprendi que a corda não precisa ser uma corda, assim, física, nem de fios nem de mãos dadas. Na maior parte dos trajetos que participei, as mulheres coordenam essa ponta de lança com jeitinho, conversando, pedindo passagem, dando aquela empurrada de leve com a bunda. Quando tá difícil, o João chega com o megafone e pede Sensualiza e anda, galera! Beija e anda! Não para de beijar, não para de andar! Vamo evoluir! As pessoas riem e entendem o recado, sem cenho franzido. Ok, quando tá muito impossível a gente se dá a mão, mas o objetivo é conseguir fazer o máximo de organização com o mínimo de restrição — afinal, é carnaval, estamos todos querendo se libertar das amarras do resto do ano. É claro que meu Mercúrio em Áries já começou a procurar megafones pra falar mais alto no carnaval do ano que vem.
Da corda das manas pra nudez na frente de todo mundo foi um pulo. Ali, no olho do furacão do carnaval, a calmaria de poder tirar a roupa no meio da rua. Entre os foliões que organizam os blocos e quase que só vejo no carnaval (quem são, onde moram e transitam no resto do ano? Vem de zap), estou protegida contra os machistas que não entendem que meu corpo continua sendo minha propriedade mesmo quando exposto. Os que acham estranho ou encarnam o Big Bad Wolf são deixados para trás na turba. Amo todos e cada um dos participantes que me deixaram à vontade para ser eu mesma, fantasiada de personagens que muitas vezes ninguém percebe ao certo quem são. E daí?
Eu vou pra rua por mim. Não tiro a roupa para me sentir sexy, desejada. Não faço dieta nem academia pra sair mais “gostosa” no carnaval. Não quero atrair olhares, tenho dificuldade em receber atenção — e é por isso que eu uso cílios postiços bem grandes, meu par de máscaras.
Me desnudo porque quero libertar meu corpo totalmente pelo menos esses cinco dias do ano. Dançar até me acabar, coberta de brilho e suor, sem medo.
Minha jornada pela liberdade está, aos 30 quase 31 anos, chegando no seu ponto máximo — até que encontre outra montanha para escalar, claro. Não fico mais preocupada com os quilos e sim com os exames que monitoram minha saúde e a postura nos asanas da ioga. Abandonei o gilete porque me enchia o saco ter que tirar os pelos pros outros. Quando tá calor, pouca roupa é a melhor solução. E gosto de me vestir assim estranha, meio fantasiada, porque a minha carne é de carnaval, o ano todo e mais ainda durante o Ano Novo Brasileiro.
Estabelecer esse espaço seguro nos blocos foi construção conjunta de muitos carnavais. A cada ciclo, somos mais mulheres com os peitos de fora pulando e brincando umas com as outras, nos reconhecemos pelos mamilos ao sol e pela proteção mútua contra quem não respeita nossa liberdade.
Nossa rede de libertas cujos nomes de batismo não saberia listar porque nos conhecemos no turbilhão do bloco são a maior conquista do carnaval em Belo Horizonte. Já morro de saudades das companheiras de corda. Outro dia, uma (cujo nome não sei, perdão!) me viu na rua e me abraçou, exclamando “ah, que saudades do carnaval!” — trajando calça de glitter numa quinta à noite casual, passeando com a filha no parquinho do bairro.
Não preciso de facebook nem zap pra saber que vou encontrá-las todas (ou quase todas) ano que vem. Estou esperando o momento que faremos um bloco só nosso, secreto, que a gente combine por no boca-a-boca, mensagem-a-mensagem. Imagina que lindo que vai ser: nós nuas (ou como quisermos) pela cidade ocupando o espaço que deveria ser nosso sempre. E repetindo o ato rebeldemente até que a rua seja nossa todos os dias. Homens, não façam bico de choro, a gente pode combinar um ponto de encontro no final onde, se a gente quiser, a gente pode unir sopros, baterias e bocas.
Quem quiser agitar essa, faça o favor de me incluir!
Podem contar comigo na corda 🙂
E se não viu, tá aqui uma canjinha. Foto do Vinícius Raposa Guimarães
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